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30 de mai. de 2013

Entrevista com o escritor e colunista: Marcelo Coelho




Formado em Ciências Sociais e mestre em sociologia pela USP. Ensaísta, escritor, colunista e membro do conselho editorial da Folha de São Paulo. Tradutor de Voltaire e Paul Valéry. Autor de "Tempo medido" (Publifolha, 2007), "Noturno" (Iluminuras, 1992), "Jantando com Melvin" (Imago, 1998) e "Cine Bijou" (Cosac Naify/Edições SESC SP, 2012), entre outros, Marcelo Coelho concedeu-me a entrevista que segue, onde fala sobre a relação burguês/boêmio, Chesterton, "petismo de direita", a "classe média que se vê refletida nas páginas da Veja" etc. 

Ao ser perguntado se a oposição errou ao não ter buscado o impechment de Lula no caso do "mensalão", Coelho responde: "Acho que tentar o impeachment do Lula seria um erro de proporções venezuelanas". E diz mais... 

A Marcelo Coelho, o meu muito obrigado. Estou grato e honrado com a abertura, a atenção e a generosidade. Confiram: 


AETANO - Segundo Luc Ferry ("A Revolução do amor", Objetiva, 2012), "era necessário que os valores e as autoridades tradicionais fossem desconstruídos pelos boêmios para que o capitalismo, também ele moderno, pudesse entrar na era do grande consumo, sem o qual sua expansão seria simplesmente impossível". Para aquele autor, os boêmios queriam acabar com o mundo burguês, mas, sem o saber, o que fizeram foi expandi-lo e fortalecê-lo como nunca. Em suma, de acordo com Ferry, o boêmio é irmão do burguês. Você concorda?

MARCELO COELHO - Bom, não li o livro de Ferry, de modo que não conheço o contexto da afirmação, e menos ainda sei aonde ele quer chegar. Trata-se de desacreditar o modo de vida boêmio? Mas que boêmios são esses? Há o boêmio-artista, um criador. Há o boêmio-dândi, o "decadentista", no gênero dos personagens de Oscar Wilde, que é um fruidor e um aristocrata. Há o boêmio-lumpen, o desajustado, o amalucado, o sem eira nem beira, um refugo da sociedade capitalista. Entende-se aqui "capitalista" como o sistema da primeira revolução industrial, e esses três tipos como presentes na sociedade vitoriana. Bem, é óbvio que o capitalismo se expandiu para além da sociedade vitoriana e de sua moral excessivamente rígida. Podemos perfeitamente considerar que esses três tipos representaram a crítica ao moralismo vitoriano, ok. Era esse o tipo ideal de capitalismo? Não necessariamente, imagino. Por que não dizer que, dado o processo de liberação dos costumes, surgiram novas necessidades de consumo, maior competitividade sexual, e que o capitalismo, como sempre, tratou de atender a essas demandas? Por outro lado, podemos pensar que os ganhos de produtividade e as lutas sociais pelo tempo livre determinaram a emergência, primeiro, de uma adolescência estendida no tempo, com gente de vinte a trinta anos sem necessidade de entrar diretamente, ou sem poder entrar diretamente no mercado de trabalho. Foram atores importantes na contestação do capitalismo, na aquisição de novos bens culturais, na produção de arte, na libertação dos costumes. O processo corre em paralelo-- o capitalismo trata de adaptar-se a essa nova realidade cultural. Por que apontar o dedo, como faz Ferry, dizendo que "ajudaram o capitalismo a se expandir"? Não podemos dizer igualmente que ajudaram "o socialismo a se expandir"? A igualdade (entre os sexos, por exemplo, a se expandir)? A liberdade individual a se expandir? Ou que ajudaram a eliminar os resquícios da autoridade patriarcal, que era aristocrática e burguesa conforme a situação, e que não era essencial, exceto num primeiro momento, ao capitalismo? Penso na necessidade de alianças, na Inglaterra, entre industriais e donos de terra. Era uma situação em que o casamento imposto pela família podia ser essencial ao status quo. Deixa de ser, provavelmente, mais tarde; seria preciso um trabalho de historiador para dizer por quê. O que me incomoda, em suma, nessa frase de Ferry é ver a ironia da história apenas no sentido "ruim" --"olha aí, os críticos do sistema acabaram servindo ao sistema"-- para desqualificar a crítica ao sistema, sem reconhecer que a crítica também teve suas vitórias sobre o sistema, que este se modificou (basta pensar na situação das mulheres).

AETANO - Concordo com vc, Marcelo. E Luc Ferry consigna que existem vários boêmios, e conflitos entre eles, que, todavia, têm algo em comum: a juventude, a crítica aos filisteus e ao modo de vida burguês. Registra também que o burguês, embora vencedor na arena do consumo, é um perdedor no terreno dos costumes. Observo, porém, que o burguês está por aí. Mas e o seu irmão? Onde estão os boêmios de hoje? Não lhe parece que eles foram "incorporados"? Provocando mais ainda: não lhe parece que o boêmio de hoje é um entediado?

MARCELO COELHO - Bom, criou-se até a figura do "bohemian bourgeois", o alternativo certinho, artista e rico. Mas não vejo o desaparecimento de figuras boêmias quando passo na Praça Roosevelt, por exemplo --muito remotamente incorporados ao sistema, a menos que seja quando conseguem uma miséria de alguma verba cultural. A questão é que a boemia não é oposta ao mundo burguês, como o proletariado. A boemia se localiza na oposição ao mundo do trabalho --assalariado ou pequeno-burguês. Criam-se vários subtipos de pessoas não adaptadas ao trabalho assalariado --o artista mambembe, o tradutor por conta própria, o jornalista free-lancer... Chamam isso na França do "intelectual precário". Há também os boêmios artistas, que podem ser cooptados posteriormente na medida de seu sucesso. O boêmio, hoje, entediado? Mas o "spleen" de Baudelaire tem mais de 150 anos.

AETANO - [rssrs]... É, como dizia Walter Benjamin, Baudelaire era um lírico no auge do capitalismo... 
Marcelo, "Ortodoxia" ("Ilustrada", Folha de São Paulo, 06/02/2008) e "O demolidor de clichês" ("Ilustríssima", Folha de São Paulo, 24/10/2010) estão, para mim, entre os melhores textos que você já publicou na Folha. Ambos cuidam de G. K. Chesterton. Como você vê a recepção desse escritor no Brasil? Você não o acha negligenciado? Mais que negligenciado, você não acha que há um preconceito em relação a Chesterton só porque ele era declaradamente católico? 

MARCELO COELHO - Acho que Chesterton não é negligenciado apenas no Brasil. Criei interesse por sua obra lendo Jorge Luis Borges, que era especializado em preferências literárias "heterodoxas" para sua época. Chesterton se sabia minoritário e extravagante, num meio anglicano e cientificista. Fez da extravagância uma arte, mas não deixa de ser extravagante. Enquanto isso, o pensamento católico tratava de se modernizar, adaptando-se a Darwin e Marx. Natural que também nesse ambiente Chesterton ficasse deslocado.

AETANO - Na cultura brasileira, a esquerda sempre foi hegemônica. Hoje, o pensamento conservador, ainda que meio caricato e desorganizado, já começa a ter mais espaço em jornais, revistas e em publicações diversas. Por exemplo, estamos prestes a receber a primeira tradução de "The Conservative Mind", de Russel Kirk, e apenas em novembro do ano passado foi publicada, aqui no Brasil, a tradução de outro cânone do conservadorismo: "Reflexões sobre a Revolução na França", de Edmund Burke (TopBooks). Como você vê essa emergência conservadora? Será que ela levará a uma definição das posições políticas por aqui, ou seja, será que um dia teremos a esquerda à esquerda e a direita à direita (tomei "direita" e "conservadorismo" como sinônimos)?

MARCELO COELHO - Pois é, Aetano, acho que o fenômeno no Brasil segue a tendência internacional, que cresce a cada novo "marco histórico": o sucesso eleitoral de Reagan e Thatcher; a queda do Muro; o Onze de Setembro. As posições políticas já estiveram bem mais definidas por aqui. Com o crescimento conservador, a esquerda tem procurado na verdade se moderar --pelo menos é o que acontece em outros países, a começar dos Estados Unidos, onde há medo de assumir como "liberal". Isso no plano das ideologias políticas. Na prática, toda experiência de poder tende a tornar mais direitistas os partidos de esquerda, e isso acontece aqui também. Soma-se a isso a aliança entre petismo, corrupção e evangelicos, para que surja um verdadeiro "petismo de direita" no país.

AETANO - Mas você não acha que a corrupção é a coisa mais bem distribuída por aqui? Ou seja, não é maniqueísta associar "corrupção" e "petismo" para cunhar a expressão "petismo de direita", como se a corrupção fosse um atributo inerente aos adeptos do direitismo? 

MARCELO COELHO - Claro, a corrupção é bem distribuída mesmo. O petista de direita, entretanto, é aquele que em vez de falar, como antes, em mudar o modo de se fazer politica no país, fala agora em defesa da razão de Estado e argumenta que faz o que todo mundo faz. Defende os aliados conservadores argumentando que contra eles a imprensa exerce um preconceito de classe. Apoia megaprojetos de infraestrutura que agridem o meio ambiente dizendo que os ecologistas são chatos e fantasiosos. Diz que estão no mundo da lua os deputados que se opõem a cobrar taxa previdenciária de quem já se aposentou. Defende um ministro que violou o sigilo bancário de um caseiro. Etc.

AETANO - A sua coluna "Questões de Ordem", que cobriu as sessões do julgamento do mensalão, foi considerada, com razão, "o melhor relato da imprensa brasileira sobre o julgamento". Após ter acompanhado tão de perto o caso, você acha que a oposição errou ao não buscar o impechment de Lula?

MARCELO COELHO - Acho que tentar o impeachment do Lula seria um erro de proporções venezuelanas. São discutíveis as provas contra o José Dirceu. Contra o Lula seria necessário um passo muito mais temerário. O impeachment é um processo muito político. Fazer isso contra um presidente com altos índices de popularidade, com bons resultados na economia? Collor teve contra si não apenas os escândalos de corrupção, mas altíssimos índices de inflação e desgoverno.

AETANO - "Eu odeio a classe média", disse Marilena Chauí. Na sua coluna de 22/05/2013 (Folha de São Paulo), você afirma que concorda com Chauí, "se definirmos classe média como o grupo que se vê refletido nas páginas de 'Veja'". Que classe média é essa que se vê refletida nas páginas de 'Veja'? Quais são seus outros traços característicos? 

MARCELO COELHO - Bem, acho que uma boa definição foi dada, se não me engano, por Roberto Schwarz quando disse que no Brasil os beneficiários do sistema se sentem vítimas do sistema. Seria, em tese, aceitável essa atitude, quando se pensa que a pessoa tem de gastar em segurança e educação aquilo que não é provido por um Estado mais eficiente. Mas fico bastante incomodado quando as pessoas reclamam dos impostos e dizem que pagariam com prazer se o Estado lhes devolvesse em serviços aquilo que pagam. Ora, um país que ainda está sendo construído tem gastos imensos em infra-estrutura, etc., que mal e mal se retomam, enquanto todo mundo ganhava com os juros que o governo pagava para se segurar com a dívida pública... Enquanto isso, leem a Veja, que trata aprovativamente de despesas com aniversários de pets e valets de luxo. Tudo se dirige de tal forma para o interesse do consumidor individual, que até críticas corretas à corrupção se contaminam pela mais descarada ausência de compromisso com o bem-estar geral da população.

AETANO - No último capítulo de Cândido, Pangloss, Cândido e Martinho encontram um velho turco que, alienado dos acontecimentos que o cercam, dedica-se somente à família e ao trabalho. O trabalho, segundo o velho, é o remédio para três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade. Cândido, após refletir profundamente sobre o discurso do turco, concluiu: "É preciso cultivar o nosso jardim". Ao que Pangloss responde: "Tendes razão, pois quando o homem foi posto no Jardim do Éden, foi ali colocado ut operaretur eum, para que nele trabalhasse, o que prova que o homem não nasceu para o repouso".

"É preciso cultivar o nosso jardim", repete Cândido, pouco depois, e o romance acaba. Sobre esse final, Flaubert diz: "a marca do mestre está nessa lacônica conclusão, tão estúpida quanto a vida em si". 

É isso mesmo? A vida é tão estúpida quanto? Ou é a conclusão dessa grande obra que não está à altura?

MARCELO COELHO - Acho que Flaubert sempre gosta de ver estupidez em tudo. Isso não o torna especialmente inteligente. Pelo menos, é claro que Voltaire era mais inteligente do que Flaubert. Nenhuma frase, por si só, seria capaz de resumir toda a sabedoria de um autor ou todo o conjunto da experiência humana. A própria frase de Pangloss, concordando com a do turco, ironiza-a ao mesmo tempo. Pode-se entendê-la, de qualquer modo, de formas muito variadas. Depende do que você entende por jardim; trata-se apenas daquilo que convém a seu interesse material egoísta? Ou o jardim pode ser o país, para um governante, ou a obra, para um escritor? Trata-se de fazer bem aquilo que se pode fazer? Não acho tão tolo assim.

AETANO - Sim, a interpretação está naquilo que entendemos por "jardim", tanto que, logo após a declaração de Pangloss, o narrador esclarece que "cada um se pôs a exercer os seus talentos": Cunegunda "se tornou uma excelente confeiteira; Paquete bordava; a velha cuidou da roupa"; Giroflée tornou-se marceneiro e Pangloss continuou filósofo. Ainda assim, Marcelo, não é irônico, trivial e até mesmo frustrante que o "jardim", metáfora de um iluminista, seja uma flagrante repetição de uma parábola bíblica (refiro-me à parábola dos talentos: Mt 25, 14-28)? 

MARCELO COELHO - não conhecia a parábola não!! Talvez o contexto mude tudo... depois de tantos horrores no romance a frase ganha um efeito de alívio, seria na verdade difícil imaginar um outro desfecho. Nesse sentido não acho frustrante...

AETANO - "Há bastante tempo não aparece um filme realmente difícil de entender. Penso naqueles de arte que passavam no cine Bijou aí por 1970".

Assim você começa "O que eles querem dizer com isso", coluna publicada na Folha de São Paulo, em 01/05/2002. 

"Cine Bijou" é também o título de um livro seu com ilustrações de Caco Galhardo (Cosac Naify/Edições SESC SP, 2012). O livro é um relato autobiográfico, nostálgico, mas também muito engraçado. Nele, em certa altura, você diz (transcrevo também para a diversão dos leitores desta entrevista):

"[...] Os [filmes] que vi no Bijou eram ainda mais difíceis de entender. Um casal brigava interminavelmente numa úmida ilha norueguesa. O homem consertava o telhado da casa de madeira. A casa, pintada de marrom escuro ou de preto, parecia atrair todo tipo de nuvens. O homem deixa cair o martelo lá de cima. O fato assume uma importância transcendental. De repente, tudo para. A atriz aparece à frente de uma parede branca e, como se fosse uma entrevista, diz o que acha da personagem que ela mesma está interpretando. A história continua; a mulher tem um pesadelo, filmado em preto e branco, com um monte de velhos remando um barco. Os símbolos se acumulam como nuvens. Alguém lê uma carta. A câmera passa com rapidez entre as letras datilografadas da carta, filmadas muito de perto, como se não as conseguisse ler. Acabava o filme e, nessas horas, eu me sentia extremamente idiota." (p. 26).

Pois é, você não acha que no meio "cult" vige ou paira no ar a ideia de que a qualidade de um filme é diretamente proporcional à sua incompreensibilidade? Ou isso já está fora de moda? 

MARCELO COELHO - Não sei, me parece que está fora de moda. Caso típico, "Solaris", de Tarkovski, encarado na época como coisa seríssima. Nunca assisti, e agora ninguém assiste, eu acho. O "cult", como eu entendo, é fruto do processo de reavaliação pelo qual uma obra meio marginal, ou especialmente típica, da cultura de massa de um período se eleva ao plano da alta cultura na geração seguinte. Filmes B, filmes noir, pequenos mestres desconhecidos do cinema de 1940 são candidatos a cult. O "meio cult", como você diz, ou seja, os "culturetes", se deixa atrair por isso ou pelo cinema não-americano em geral, mas compartilha de certo desapreço pelo alegórico, que era a marca do cinema mais prestigiado por volta de 1970.


7 comentários:

  1. Achei o Marcelo Coelho extremamente apegado a rótulos (esquerda e direita) o que, a meu ver, indica uma terrível e lamentável falta de coragem para rever suas posições e sua história. Inventar esse papo de "petismo de direita" apenas para dissociar esquerda de corrupção foi dureza de ler...
    Em que tábua da lei está, afinal, escrito que esquerda é necessariamente o bem e direita, o mal? A essa altura, após as lições da história dentro e fora do Brasil, perpetuar esse esquematismo primário me parece uma enorme limitação intelectual...

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  2. Excelente entrevista com o um dos maiores intelectuais dos nossos tempos. Parabéns, Marcelo. Parabéns, Aetano.

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  3. Gosto de texto que me remetem a outros. Gosto de caminhar para além do que me é apresentado. E teus textos, entrevistas ou não, fazem isso com maestria. Descascam camadas de sabedoria. Apontam para novas camadas.

    Você se refere, na entrevista, à Parábola dos Talentos, a de Mateus. Fui relê-la e encontrei a de Lucas, também conhecida como a Parábola das Minas . E os dois textos, que se assemelham, guardam relação com outros ainda mais antigos. É mágico desfiar tais novelos.

    Abraços da Clara


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  4. Obrigado pelo comentário, Clara. Vc tem razão. Beijos

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  5. Gostei muito...Entrevistador e entrevistado mostram uma sensibilidade e cultura raros nestes dias que correm e se esfalfam por uma felicidade artificiosa...parabéns a ambos e abraço transatlântico...

    Antonio Gil

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  6. Muito obrigado, Antonio Gil.

    Forte abraço

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